Vivia ela feliz em seu mundo, mundo de menina, de menina pobre. Vivia cercada da riqueza que só a pobreza é capaz de oferecer. Uma rua como lar. Árvores para subir. Espaço para correr, brincar. Amigos que, iguais a ela, gozavam da mesma imensidão que é não ter. E que juntos, iam se fazendo gente.
Com seus amigos tudo era festa, partilha, entrega. Estavam juntos todos os dias, o dia todo. Freqüentavam a mesma escola, a mesma rua, a casa um do outro, e o momento especial do dia: brincar ao anoitecer. Brincar de roda, de corda, de carimba, de sete pecados... Eram tantas as brincadeiras que não cabiam em uma noite, sempre deixavam uma para a próxima noite, o próximo encontro.
A rua, seu lar, ainda era de pedras, com poucas casas. E as casas que tinha, eram pequenas, com muito espaço ao redor. Não tinham muros, a porta da entrada dava diretamente para rua, para facilitar o encontro com o outro. Mais do que uma rua, seu lar, era uma aldeia.
Um dia, construíram uma casa em sua rua. Uma casa grande, com muros altos, portão. E lá dentro, depois do portão, uma porta. Uma porta que permanecia sempre fechada. Morava naquela casa uma mulher com duas filhas, eram duas meninas, iguais à menina. E ela, menina, não compreendia, porque essas meninas não saiam à rua. Às vezes para elas brincarem, sua mãe, roubava da rua e da menina, suas brincadeiras e alguns de seus amigos, levava para a casa e sempre fechava a porta. Sempre.
Passados alguns meses, a menina soube, por sua irmã, que aquela mulher, de porta fechada, iria abrir sua porta, para celebrar o aniversário de uma de suas filhas. Foi uma alegria geral na rua. Uma Festa! Uma porta que se abria. A menina era a única que não conseguia se alegrar, não entendia o porquê, mas alguma coisa lhe dizia que ela não podia fazer sua, aquela alegria.
O dia da Festa chegou, e por insistência de sua irmã, a menina foi. Ao chegar à casa, a Festa já acontecia. Todos os seus amigos estavam lá, brincando, no espaço entre o portão e a porta. A porta permanecia fechada. A menina entrou, com o seu presente na mão, mas não encontrou a aniversariante, para poder abraçá-la e presenteá-la, como era o costume da rua. Encontrou um cesto com o nome da aniversariante, cheio de presentes. Meio sem jeito, a menina colocou seu presente ali. Não se sentia a vontade, aquela porta fechada lhe dizia tanta coisa, em sua meninice, que preferiu sentar-se e esperar à hora dos parabéns.
De repente, a porta se abriu, e aquela mulher anunciou que havia chegado a hora mágica dos parabéns. Convidou a todos para entrarem. Todos os meninos e meninas se organizaram em fila para poder passar pela porta e chegar à mesa onde estava o bolo e a aniversariante esperando. A menina era a última da fila e, via de seu lugar, cada criança que entrava e passava pela porta. Cada vez ficava mais perto a sua hora de também passar. Estava feliz, pois se aproximava o momento em que iria descobrir o que se escondia detrás daquela porta sempre fechada. Mas, para sua surpresa, ao chegar o seu momento, escutou uma voz de uma delicadeza forçada, que só os adultos conseguem ter, que lhe disse: não, você não pode entrar.
Nem a menina nem a mulher puderam perceber no momento a dimensão que foi esse ‘não, você não pode entrar’. O único que se sabe é que a menina, obediente que era, voltou para o seu assento e esperou terminar a festa para voltar para casa. Ao chegar em casa, chorou como gente grande e durante muito tempo em sua vida, continuou ouvindo a voz da mulher, impregnando sua alma, fazendo-a acreditar que a qualquer momento, em sua vida, alguém iria chegar e dizer novamente: “não, você não pode entrar”. Assim, a menina foi se acostumando a não sentir sua, a vida.
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