Olhava-se no espelho, mas não conseguia enxergar o que de verdade era. Os cabelos muito curtos parecia não combinar com o que dizia sua alma. Muito menos as roupas, uma camisa grande com estampas e um calção de jogador de futebol. Era tão esquisito se olhar. Tanto, que evitava os espelhos, melhor ser, sem ver. Lembrava-se de quando era menor. Parecia, a primeira vista, igual a todos os meninos da rua. Mas mesmo parecendo, sentia-se diferente. Apesar de adorar brincar de bila, de subir em árvores, de peão. Quando brincava sentia-se tão igual. E por que, às vezes, tinha a sensação de estar usando disfarce? Por que não lhe saía da alma essa estranheza? Que escondia de tão profundo? De que se disfarçava? Não se dava conta. Apenas pressentia...
Hoje, ao olhar-se no espelho, sentia um profundo incômodo ao ver sua imagem. Mais do que sempre. E sempre que se sentia assim, lembrava do que sua mãe sempre lhe dizia: é para sua segurança, você ainda vai me agradecer. O mundo é muito perigoso. Não sabia, a sua mãe, que perigoso é não viver é não ser é não se ver. E por amor a sua mãe, cresceu carregando na alma, a culpa de ser o que se é.
Mesmo com toda a culpa, sentia uma necessidade vital de rebelar-se, arrancar aquele disfarce, despir-se do não ser. Percebia que estava chegando a hora. Seu corpo, num gesto de cumplicidade, fez-lhe conhecer um segredo há muito guardado, porém esperado. Sentia pulsar seu sexo, seu sexo tão proibido, tão negado. Agora, num gesto de rebeldia, expulsava todos os ‘nãos’, em forma de sangue. Sangue vermelho, vermelho da paixão, do Cristo feito mulher. Extasiada, arrancou a roupa do corpo, acariciou seu sangue, passou-o por todo o seu corpo. Tocou seu sexo e chorou, chorou.Chorou pelo milagre de se fazer mulher.
E num impulso de vida, correu nua, por toda a casa, até encontrar sua mãe e, vendo o medo em seus olhos, mostrou-lhe as mãos limpas com o sangue, seu sexo e lhe disse com toda a certeza d'alma: Sou mulher, não tá vendo?


A menina sim, se sentia sozinha, apesar de já está acostumada a essa solidão. Até por que ela nunca se adaptou ao mundo dos adultos. Vivia em seu mundo de sonhos. Alguns poucos a conseguiam tocar e tirá-la das nuvens, lugar onde se sentia mais segura. Mas não tinha medo da solidão, tinha medo sim de ser tocada, do contato com o outro e de tudo o que isso representa. O compromisso de ser com o outro, para ela, sempre foi um desafio. Assim, que em seu mundo, as nuvens, ficava a observar as pessoas ao seu redor e só se permitia ser com aquelas as quais ela acreditava não serem capazes de lhe arranhar a alma. Ela não entendia que ser com outro é se permitir arranhar a alma.